Naturalmente, a crítica está recheada de spoilers, tanto sobre Batman Begins como sobre The Dark Knight Rises¹.
A década de 1980 é marcada por uma força global do mal (illuminati?) que, através das corporações e governos, conseguiram instituir políticas socioeconômicas que causaram efeitos nefastos e agravaram a desigualdade, fazendo com que os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres, com níveis descomunais de desemprego.
A diferença é que no universo do Batman, o principal bilionário de Gotham (Thomas Wayne) não consegue ver e suportar este sofrimento e começa a investir maciçamente na cidade, já que o governo não faz nada. O símbolo deste investimento é a construção de um super trem que liga a cidade inteira em uma tentativa desesperada de aumentar os postos de trabalho para a cidade voltar a prosperar, num claro exemplo da política econômica keynesiana. Mas, numa reviravolta digna de ficção (de comic books em especial), Thomas Wayne e a sua esposa, Martha Wayne, acabam assassinados por um desesperado e miserável cidadão que ele tanto tenta ajudar. Ironia do destino?
O assassinato dos bilionários deixa a população de Gotham estarrecida, o que leva a cidade a mudar sua política socioeconômica e adotar o neoliberalismo. Ou seja, ao invés do Estado intervir na sociedade com a estatização de empregos e, consequentemente, combater o crime que assola as ruas, o Estado prefere deixar a iniciativa privada prosperar e regular o mercado, o que acaba permitindo que a corrupção aflore e que criminosos dominem todos os setores da sociedade. Mas o neoliberalismo sem a vigília do Estado traz as suas consequências e, já a esta altura do filme, vemos que os governantes preferem tratar o crime como problema de saúde mental, e não como reflexo do próprio abandono do Estado.
Com a saída de cena dos bilionários, o crime organizando vai preenchendo as lacunas e tomando o seu lugar, seja comprando juízes, líderes sindicais e até policiais. Antes a cidade era liderada pelos investimentos da Wayne Enterprises, mas com a morte de Thomas Wayne, Gotham é abandonada e ‘administrada’ pelo mafioso Carmine Falcone. Não há política, seja keynesiana ou neoliberal, que ajude a cidade, quando se tem a corrupção infiltrada em todos os estratos da sociedade.
Alguns ainda permanecem honestos e incorruptíveis, como o tenente Gordon (polícia) e a assistente da promotoria Rachel Dawes que se recusam a serem comprados. Vemos a promotoria fazer um acordo para libertar o assassino dos Wayne’s em troca de um testemunho contra Falcone. Bruce Wayne, o filho único dos bilionários, não consegue entender esta prática habitual do sistema judiciário e, atormentado por seus demônios pessoais, parte para resolver a questão de maneira vingativa. Rachel Dawes não aceita tamanho egoísmo e diz que Bruce precisa enfrentar o problema de frente feito um homem e não um covarde, o que o leva a confrontar Falcone. Este momento é o divisor de águas para Bruce, após ouvir Falcone explicar que ele sempre viverá com medo daquilo que não entende. Bruce foge de Gotham e sai em busca para compreender os criminosos.
Essa busca leva Bruce até o extremo oriente onde conhece a Liga das Sombras e o mentor Ra’s al Ghul, que existe justamente por conta desta força global do mal e que foi a mesma que inventou o neoliberalismo. A tal liga tem um novo plano para ‘consertar’ Gotham e dessa vez não será pela ajuda filantrópica dos Waynes, nem mesmo as políticas neoliberais da livre iniciativa (e livre corrupção): o plano agora é atacar Gotham na esperança de infligir medo suficiente para que a cidade sucumba e recomece do zero².
No treinamento, Bruce, ainda assombrado pela execução sem sentido dos pais, se recusa a vestir o capuz de um executor e, ao invés, resolve tocar o terror internamente na Liga das Sombras. Passado a experiência, Bruce volta para Gotham e resolve mudar o status quo do medo. Ao invés da população sofrer com o medo imposto, Bruce resolve usar o medo a favor dele e da população criando a figura do Batman. Ele ajuda a Rachel Dawes a incriminar Falconce, recupera a sua empresa das mãos dos executivos corruptos e volta a ser o bilionário, igual ao seu pai.
O desfecho do filme e resultado de ações tomadas por Bruce, mas na ordem inversa daquelas vistas em The Dark Knight Rises. O ataque do Batman em Falcone inicia uma nova era de repressão ao crime, tira o crime organizado e violento das ruas, e devolve às corporações as chaves de Gotham (poder e riqueza).
Passado os eventos de The Dark Knight Rises, com o desaparecimento do Batman, o neoliberalismo volta a cena e reequilibra o mercado. Wayne Enterprises que, ao final de Batman Begins, passa a ser de capital fechado, volta ao mercado de ações e vira uma empresa de capital aberta e negociada livremente. A tal força do mal volta com Bane numa nova (continuada) tentativa de consertar Gotham libertando todos os presos de Blackgate Prison, ou seja, devolvendo à cidade o crime organizado³.
A construção das histórias não são ao acaso e a saga criada por Christopher Nolan termina com a suposta morte do Batman/Bruce Wayne o que permite a levar a vida que levava antes de virar um vigilante, nos levando ao começo de Batman Begins⁴. Se for ver, Batman não conseguiu fazer nada que tinha em mente que era consertar a cidade e livrá-la do mal.
Ω
- Batman Begins e The Dark Knight Rises são filmes antagônicos e uma série de cenas de ambos os filmes são idênticas. Como um filme completa o outro, entender o primeiro filme da saga ajudará a entender o desfecho do terceiro filme.
- Isto é uma alusão à queda do World Trade Center, onde a cidade de Nova Iorque teve que se reerguer (físico e emocionalmente) do zero. Além disso, esta alusão é um toque sutil para aqueles que acreditam que foi um trabalho encomendado (sim, a queda das torres foi demolição controlada – e merece um post exclusivo).
- Interesssante ver como a sociedade é controlada por uma força invisível. Quando políticos, empresários bilionários, mafiosos, sistema judiciário – qualquer um que tenha o poder em mãos – abusam de tal condição, esta força invisível do mal aparece e impede que o sistema mude. Corrupção e desigualdade social é sempre presente, independentemente de quem esteja no poder ou de qual política socioeconômica está em vigor.
- Os filmes são os mesmos, só que contados de forma inversa. Até construção do Robin em The Dark Knight Rises segue a mesma premissa do Batman – órfão frustrado com a violência e o descaso do Estado, resolve combater o crime – John ‘Robin’ Blake é órfão e quando se vê frustrado com a situação de Gotham resolve seguir os passos de Batman. Assim o ciclo jamais termina.