The Dark Knight e a Teoria dos Jogos

Se ainda não assistiu este clássico instantâneo das adaptações de quadrinhos para o cinema, saiba que a a crítica abaixo está recheado de spoilers, abordando todas as tramas, subtramas, reviravoltas etc. Se ainda for ver este filme, sugiro parar por aqui. Vá ver o filme e depois volte para ler a resenha.

Como já falado em outros dois posts, Batman Begins mostra o aumento explosivo da criminalidade em resposta às políticas socioeconômicas para aumento de empregos e diminuição da pobreza característicos da década de 1960, enquanto em The Dark Knight Rises mostra as políticas da década de 1980 de repressão ao crime e uma economia neoliberal levar a classe média à uma revolta contra o establishment e a população rica.

Batman Begins e The Dark Knight Rises são filmes reflexos um do outro, onde o primeiro mostra o fracasso das políticas liberais, e o outro sobre o fracasso das políticas conservadoras. Em meio a isso tudo, temos The Dark Knight que, ao meu ver, é o último filme desta triologia niilista¹ (ainda que seja o segundo filme do ponto de vista cronológico), que busca documentar a falta de esperança de uma sociedade além do que os lados liberais ou conservadores podem oferecer como solução.

Vamos lá, o filme começa mostrando a dificuldade que a sociedade tem para lidar com o Batman, onde a população se divide em aqueles que acham errado idolatrar o vigilante mascarado que transcende a lei para fazer justiça com as próprias mãos e aqueles que aprovam os resultados desta cruzada (incluindo o novo promotor, Harvey Dent). Esta nova forma de justiça do Cavaleiro das Trevas inspira (literalmente) uma onda de imitadores de segunda categoria.

Igualmente inspirado, Dent tenta fazer a sua parte processando os criminosos, usando o que o sistema judiciário tem de melhor e chega a prender todos os banqueiros dos mafiosos (exceto o chinês Lau que foge de volta para a China). A caçada continua atrás dos próprios mafiosos, começando com Maroni, novo chefe da máfia (que assumiu o lugar de Falcone, preso em Batman Begins). Politicamente, Dent consegue chamar atenção, mas os resultados não parecem promissores, uma vez que novos bandidos surgem para assumir o lugar daqueles presos por Dent.

Dent, então, decide que a única maneira de causar algum estrago nos planos da máfia é prendendo todos os bandidos de uma vez e criar um vácuo nas ruas sem os criminosos, ainda que com base em acusações que consiga manter apenas os bandidos mais fuleiros presos (os mais poderosos, com bons advogados, conseguirão liminares e habeas corpus para responderem em liberdade). Esta passagem server para mostrar que Dent não se importa em quebrar regras, desde que resolva o problema (Consequencialismo), novamente se mostrando inspirado no Batman.

Ao conhecer Bruce Wayne pela primeira vez, Dent fala sobre a necessidade de modificar (ou quebrar) as regras para o bem da sociedade citando os Romanos que, durante a República, suspenderam a democracia para proteger Roma (embora a Rachel completa dizendo que os Romanos, eventualmente  perderam a democracia com o nascimento do Império). Dent vai além e diz que este é um problema inato dos heróis (e do Batman), o que ele espera consertar quando assumir o manto do Batman, ainda que por dentro do sistema como um promotor de justiça:

You either die a hero or you live long enough to see yourself become the villain.

O problema dessa empreitada toda é que ele está pondo todo o sistema na alça de mira. O prefeito de Gotham alerta que a carreira dos dois vai para o brejo se esta tática não der certo, prevendo que o problema ficará fora de controle quando todos aqueles que tem o que ganhar com a corrupção começarem a sentir os bolsos mais leves:

The mob, politicians, journalists, cops — anyone whose wallet’s about to get lighter.

Da mesma forma que Dent se mostra frustrado com o sistema judicial, o Coringa se sente frustrado com os criminosos atuais e propõe que eles precisam ir além do que tem feito:

The Chechen: What do you propose?

The Joker: It’s simple. We, uh, kill the Batman.

Depois do choque causado com uma proposta aparentemente absurda, o Coringa se oferece para resolver o problema Batman por uma quantidade proibitiva de dinheiro, que os mafiosos acabam, eventualmente, aceitando. Essa proposta mostra como o Coringa é obssecado com a ideia do homo economicus², o que pode ser percebido quando os mafiosos perguntam a razão de tanto dinheiro (ou do simples fato de cobrar dinheiro) para matar o Batman e ele responde:

Like my mother used to tell me: if you’re good at something, never do it for free.

Vale lembrar que o filme começa com o Coringa tendo contratado 5 bandidos para roubar um dos bancos dos mafiosos da seguinte maneira: Dopey desliga o alarme, Happy mata o Dopey e abre o cofre, Grumpy mata o Happys e põe todo o dinheiro nas bolsas, Grumpy é atropelado pelo ônibus usado na fuga. Bozo, finalmente, mata o motorista e tira a máscara revelando ser o Coringa. Esta primeira dinâmica é o famoso pirate game e, assim como na teoria, permite que o Coringa fique com todo o dinheiro após um elaborado plano de eliminação. Batman, ainda usando a tática de impor medo, tenta rastrear o Coringa ameaçando Maroni, o que pouco serve pois o mafioso explica que o Coringa não é preso à nenhuma regra e, por isso, é totalmente imprevisível, o que impede que qualquer um abra o bico para dedurar o palhaço:

No one’s gonna tell you anything — they’re wise to your act — you got rules. The Joker, he’s got no rules. No one’s gonna cross him for you.

Esta loucura do Coringa é planejada e conhecido como o teorema de Davies-Folk: a coisa racional a se fazer é parecer ser irracional para que o seus oponentes não contem com a hipótese de que você faça algo racional. Alfred rapidamente percebe a relação do Coringa com um bandido da época em que ele trabalhava para o governo de Burma (ou Myanmar) e conta seguinte história:

I was in Burma. A long time ago. My friends and I were working for the local government. They were trying to buy the loyalty of tribal leaders, bribing them with precious stones. But their caravans were being raided in a forest north of Rangoon by a bandit. We were asked to take care of the problem, so we started looking for the stones. But after six months, we couldn’t find anyone who had traded with him. (…) One day I found a child playing with a ruby as big as a tangerine. (…) The bandit had been throwing the stones away. (…) Some men just want to watch the world burn.

Vejam o paralelo nesta história e o modus operandi do Coringa. O bandido se mostrou mais doido que o próprio plano do governo de Burma (já baseado numa premissa maluca e, totalmente, corrupta: subornar pessoas) e fez algo tido como irracional (jogar as pedras preciosas fora), mas totalmente racional (evitou o suborno), impedindo que a lealdade da população fosse comprada. Da mesma forma, quando o Coringa finalmente põe as mãos no dinheiro, ele simplesmente põe fogo na fortuna (ato irracional que põe todos os mafiosos no “bolso” dele, por se tratar de  um homem irracional, inconsequente e louco – quem é que vai enfrentar um sociopata destes?).

Enquanto isso, Dent começa a desviar da sua retidão como promotor quando ele sequestra um dos comparsas do Coringa e tenta arrancar informações através de ameaça. Num último instante, Batman intervém e impede que Dent destrua a sua própria credibilidade como promotor mostrando que este estilo de interrogação é algo que somente o Batman pode fazer (por já estar à margem da sociedade).

Já no clímax do filme, Batman confronta o Coringa no meio das ruas de Gotham numa verdadeira disputa de faroeste, conhecido como o  jogo da galinha (ou chicken): o Coringa sabe que o Batman respeita uma só regra (não mata nenhum bandido) e encoraja-o a quebrá-lo e matá-lo, mas quando o Batman está prestes a atropelar o Coringa com o batpod, ele se desvia no último instante e acaba caindo e sendo pisoteado pelo Coringa, em clara comemoração sabendo que “quebrou” o Batman.

Na sequência, Jim Gordon aparece de surpresa e rende o Coringa que é levado à carceragem da polícia de Gotham. Num “pré” interrogatório feito pelo Batman, essa única regra é abusada quando o Coringa mostra que, apesar de trabalhar à margem da sociedade, na verdade o Batman é mais um elemento controlado por esta sociedade:

To them you’re a freak like me. They just need you right now. … But as soon as they don’t, they’ll cast you out like a leper. (…) Their morals, their code… it’s a bad joke. Dropped at the first sign of trouble. They’re only as good as the world allows them to be. You’ll see — I’ll show you… You have these rules. And you think they’ll save you. (…) [But ] the only sensible way to live in this world is without rules.

Ainda nesta sequência, o Coringa caçoa de Gordon dizendo que ele não tem qualquer controle sobre a equipe dele (Polícia) e, na verdade, todos “trabalham” para Maroni, provocação esta conhecido como o clássico problema do principal-agente (diz respeito às dificuldades em motivar uma parte (o “agente”) para agir no melhor interesse de outro (o “principal”), em vez do que em seus próprios interesses):

Does it depress you, Lieutenant, to know how alone you are?

Ainda preso, Batman arranca do Coringa que tanto Dent como Rachel foram sequestrados e estão em localidades diferentes prontos para serem explodidos, mas que o Batman só tem como salvar um dos dois (exemplo de custo de oportunidade). Batman escolhe salvar seu amor de infância e sai em disparada para o endereço correspondente indicado pelo Coringa, apenas para descobrir que o próprio Coringa trocou os endereços (essa disputa e o desfecho dela se parece com o jogo Battle of Wits do filme The Princess Bride). Rachel morre e Dent é salvo, mas com metade do rosto queimado por conta da gasolina utilizada como explosivo, assim se transformando noutro vilão clássico – Duas Faces (clássico bipolar, mas exageradamente caricato).

Outra situação interessante no filme é quando Reese, empregado da Wayne Enterprises resolve ir à público (e num talk show) para revelar a identidade do Batman, mas o Coringa resolve intervir ligando para a emissora numa tentativa de impedir a revelação. O palhaço propõe que explodirá um hospital cheio de paciente se não matarem o Reese (situação esta conhecida como o trolley problem: uma pessoa precisa decidir se é melhor deixar 100 morrem ou matar 1). Já no hospital, o Coringa se explica para o Dent:

Do I really look like a guy with a plan, Harvey? I don’t have a plan… The mob has plans, the cops have plans. … Maroni has plans. Gordon has plans. Schemers trying to control their worlds. I’m not a schemer, I show the schemers how pathetic their attempts to control things really are. It’s the schemers who put you where you are. You were a schemer. You had plans. Look where it got you. … Nobody panics when the expected people get killed. Nobody panics when things go according to plan, even if the plan is horrifying. If I tell the press that tomorrow a gangbanger will get shot, or a truckload of soldiers will be blown up, nobody panics. Because it’s all part of the plan. But when I say that one little old mayor will die, everybody loses their minds! Introduce a little anarchy, you upset the established order and everything becomes chaos. I’m an agent of chaos. And you know the thing about chaos, Harvey? … It’s fair.

Como esse monólogo Dent finalmente pira, cruza o limite dos seus princípios e começa uma caçada contra todos aqueles que ele culpa por serem responsáveis pela morte de Rachel: primeiro ele pega Weurtz no Bar que o tinha sequestrado, Weurtz entrega o Maroni que, por sua vez, entrega Ramirez, o que leva Dent a chegar na família de Gordon e, naturalmente, ao próprio Gordon.

Batman, por sua vez, também vai esticando o limite dos seus princípios e, numa última tentativa de rastrear o Coringa, transforma todo celular (antena) em Gotham numa espécie de sonar ou um aparato de espionagem, essencialmente.

O Coringa, numa última cartada, consegue deixar a cidade desestabilizada o suficiente para que uma boa parte da população tente escapar Gotham pelo catamarã, assim como a população carceraria de Arkham num outro catamarã. Quando as duas embarcações estão em águas profundas e longe da costa, o Coringa desliga as embarcações e apresenta cada um dos dois lados um controle remoto para detonar explosivos na outra embarcação, construindo o dilema do prisioneiro. Os passageiros cidadãos normais discutem o assunto e votam, enquanto noutra embarcação, um dos prisioneiros joga o controle pela janela, numa combinação de pacto de Ulisses (é uma decisão feita livremente com o objetivo de se atrelar ao resultado no futuro) e uma escolha dinamicamente inconsistente (o melhor plano de um jogador parece ser o ideal no presente mas se mostra que não é o ideal no futuro).

Num último jogo que me vem a mente (mentira, revi o filme algumas vezes para lembrar das cenas), Gordon prepara um hostage rescue team, mas Batman descobre que os bandidos são os “reféns” e os reféns os “bandidos”, numa excelente ilustração de “The Market for Lemons”, que explica a aparente facilidade imposta pelo Coringa para matar seus comparsas (porque você acreditaria que aqueles “bandidos” são os reais bandidos?). O resultado disso tudo é a intervenção eficaz do Batman salvando os reféns “bandidos”, impedindo o  SWAT de matar os reféns e captura dos bandidos “reféns”.

O desfecho do filme mostra Batman indo atrás de Gordon e tentando impedir que Dent mate a família do Comissário. Dent discursa e explica a sua nova filosofia:

You thought we could be decent men in an indecent time. You thought we could lead by example. You thought the rules could be bent but not break…² you were wrong. The world is cruel. And the only morality in a cruel world is chance. Unbiased. Unprejudiced. Fair.

The Dark Knight mostra o tempo todo as inúmeras tentativas dos personagens querendo alterar o curso do sistema: Batman, originalmente, acreditava que conseguiria inspirar a população de Gotham a lutar contra a corrupção, mas acaba pondo em risco os jovens que o imitam. Dent acreditava que podia limpar as ruas seguindo as regras do sistema judiciário, mas acaba jogando todos os seus princípios pela janela ao ser consumido pela sua obsessão pela igualdade e justiça e vira um monstro bipolar. Mas o melhor plano de todos era o do Coringa: ele é mais corrupto do que os corruptos poderiam imaginar e, assim, toma o lugar dos mafiosos oferecendo a Gotham uma classe melhor de criminosos (“a better class of criminal”).

No final, o plano do Coringa dá certo, ele continua vivo depois de toda o caos que causou, os mafiosos estão presos ou mortos, sem poder e sem dinheiro (que acabou sendo “distribuido” pelo fogo). Aliás, esse cenário é o perfeito pano de fundo para a aparente paz vista no começo de The Dark Knight Rises, onde os ricos (e políticos) não se sentem pressionados (nem corrompidos) pelos mafiosos, o que os deixa com o poder suficiente para adotar políticas duras contra o crime para que não surja outro “Coringa”.

O filme conclui que para Batman funcionar (ou, melhor, Dent ser entronizado como o “Cavaleiro Branco”) é necessário que o Cavaleiro das Trevas se torne o vilão. A grande sacada do filme é que o herói é o Coringa (ainda que não apresente os traços característicos de um herói). Veja que ele apenas mata uma pessoa (com o truque do desaparecimento do lápis no começo do filme) e, através do seus caos inspirado ele destrói os criminosos da cidade (aterrorizando a população neste meio tempo, é claro). Batman consegue, temporariamente, prender o Coringa, resolver o problema de corrupcão e criminalidade que infesta a cidade, mas fica claro na cara do “zé das couves” que este tipo de passagem não é aceitável.

Finalmente no The Dark Knight Rises, Batman se vê sem solução para evitar que os criminosos fiquem cada vez piores (como se tentassem equilibrar as forças com um vigilante feito o Batman), o que o leva a fingir a sua morte e sair de cena voltando a ser aquele playboy de antes de Batman Begins.

Ω


  1. Conceito que mostra como os valores tradicionais se depreciam, onde tudo na sociedade é desestabilizado, sacudido, posto radicalmente em discussão.
  2. Homo Economicus é um conceito de muitas teorias econômicas onde o ser humano é tido como um ator racional e, por vezes, egoísta, e que tem a capacidade de fazer escolhas ou julgamentos que atendam os seus fins subjetivamente definidos. Este conceito é em contraste com o Homo Reciprocans que afirma que os seres humanos são motivadas, principalmente, pelo desejo de ser cooperativo e querer melhorar seu ambiente.
  3. Esta transcrição é a versão do roteiro, mas acabou sendo levemente editada na montagem final do filme.

Fala aí